sexta-feira, 25 de setembro de 2009

“POR UMA ANTROPOLOGIA DA CONDIÇÃO HUMANA NAS ORGANIZAÇÕES” (Jean-François Chanlat)

No conto “O Espelho – Esboço de uma nova teoria da alma humana”, o protagonista Jacobina conta algo que lhe acontecera aos seus 20 anos, época em que havia se tornado alferes. Amigos e parentes não o chamavam mais pelo nome, apenas de “senhor alferes”.

(...) 0 certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?

- Não.

- O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse: à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem.

Fora convidado a fazer uma visita à fazenda de sua tia Marcolina. Um dos agrados feitos pela tia a ele foi colocar em seu quarto um grande espelho, herança de família que tinha lugar de original na sala de estar. Ocorre que a filha de Marcolina fica enferma e ela o deixa com os escravos, que no dia seguinte fogem. Jacobina encontra-se solitário, mas resolve ficar ali cuidando da fazendo até sua tia voltar. Muitos dias se passam e ele continua ali sozinho.

- Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno. - o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me, orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único, - porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava.

(...)

- Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dous, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias, deu-me na veneta olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. 0 próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado. Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma cousa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos. Continei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou- me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha idéia...

- Diga.

- Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar.

- Mas, diga, diga.

- Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vestia-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece índivídualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria, e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em.diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regímen pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...

Chanlat diz que a realidade social transforma-se em suporte para a realidade psíquica. E é através das relações que se identifica e reconhece sua existência. Machado de Assis no conto citado já dizia algo sobre essa questão. O Homem possui duas almas: a interna e a externa. “Uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro.”

O ser humano é um ser de significações. Tudo o que conhece (material ou não), ele atribui um significado. Ao perguntar a alguém se ela sabe o que é o amor ela responderá que sim. Ao pedir que explique o que ele é, ela poderá dizer que amor “é fogo que arde sem se ver; é ferida que dói e não se sente; é um contentamento descontente” *, ou seja, dirá o significado do amor, mas não o que ele é realmente. A comunicação também é repleta de significações.

Segundo o autora Flora Davis em sua obra “Comunicação Não-Verbal”, mais de 80% de nossa comunicação não é verbal. Temos, portanto, um grave problema nas organizações na medida em que a comunicação fica restrita à troca de informações entre os “recursos” da organização. Perde-se em profundidade do simbolismo organizacional e a identidade individual e coletiva.

A racionalidade econômica trata as pessoas apenas como recursos dentro das organizações modernas, não havendo preocupação com suas relações entre si e, sim, com a relação entre elas e as “coisas”. Transformam-se, assim, em objetos também. Por isso, homens e mulheres buscam satisfação em suas vidas pessoais, e muitos consideram ser impossível havê-la no meio profissional, como se podia esperar tradicionalmente. Essa mudança é reflexo do individualismo extremo que a sociedade chegou.

O Homem é um ser de reflexão e ação, de linguagens, de significações, de simbolismos. Chanlat diz, então, que é chegado o momento de uma verdadeira antropologia da organização que agrupe o conjunto de conhecimentos sobre o ser humano, destacando suas dimensões e seus níveis de análise.

NÍVEL DO INDIVÍDUO,

NÍVEL DA INTERAÇÃO,

NÍVEL DA ORGANIZAÇÃO,

NÍVEL SOCIEDADE,

NÍVEL MUNDIAL.

Esses cinco níveis de análise não possuem linearidade e nem hierarquia entre si. Está estreitamente relacionado de forma circular. Isso quer dizer que qualquer um dos níveis influencia os outros e assim por diante.

Origens sócio-culturais, herança biológica, história pessoal, etc., influenciaram nas atitudes de cada indivíduo. Por isso o NÍVEL DO INDIVÍDUO explica por que pessoas reagem de formas diferentes a situações organizacionais similares. A perspectiva de que os indivíduos são socialmente determinados, vem abrindo caminho para a de indivíduos que participam da construção e destruição da realidade.

Chanlat escreve que “é na relação com o outro que o ego se constrói”. Essa sentença fica bem justificada no conto “O Espelho”. O outro é para o indivíduo um modelo, um objeto, uma sustentação e um adversário ao mesmo tempo. Eis, então, o NÍVEL DA INTERAÇÃO que pode ser dividido em três categorias:

- Relação “self-outro” (indivíduo com outro): conversas de corredor, entrevista entre superior e subordinado, troca de informações entre colegas, etc.

- Relação ego-massa (indivíduo com grupo): assembléias gerais, greve, manifestações sindicais, esportivas e religiosas, etc .

- Relação nós a nós (entre grupos): executivos-operários, masculino feminino, etc.

Em qualquer das categorias, as interações podem ser tanto formais como informais.

As próprias organizações têm sua história organizacional, seu universo cultural, enfim, características que configuram cada uma delas de forma singular e influenciam comportamentos coletivos e individuais. As organizações contemporâneas edificam a ordem social mundial, ou seja, não contribuem apenas para o desenvolvimento econômico do país ao qual pertencem, mas fazem parte da imagem dele, sendo vetores de cultura. É nesse NÍVEL DA ORGANIZAÇÃO que podemos distinguir, por exemplo, as empresas samurais e yankees, cada uma retrata particularidades de seus países de origem.

As organizações são fundamentos importantes para a sociedade pós-moderna. Toda sociedade é constituída pela esfera econômica, política, social e cultural. O NÍVEL DA SOCIEDADE engloba os outros níveis na medida em que toda pessoa é socializada em determinado meio. Desde o nascimento de cada um de nós, passamos pelo processo de socialização, aprendendo as normas da sociedade na qual estamos inseridos. A socialização não apenas dá uma identidade para um indivíduo, mas codifica igualmente as interações e leva para as organizações os valores do universo social. Por isso, então, que é fundamental para as organizações que elas conheçam a cultura e a sociedade à qual está inserida.

A economia de nossa sociedade é integrada, diferentemente das sociedades que nos precederam que era regional. Fronteiras nacionais estão desaparecendo, ameaças ecológicas se mundializam. Junto com isso a distância entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos aumenta cada vez mais. Esses e muitos outros acontecimentos no NÍVEL MUNDIAL acarretam na mudança da dinâmica humana nas organizações.

Fonte: Elisa Cristofolini da Silva - UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL - ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO - Filosofia e Ética na Administração - Professor Aida Maria Lovison. Porto Alegre, junho de 2006.


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